Precisamos falar sobre ERRO MÉDICO.

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Judicialização da medicina

A judicialização da medicina é uma preocupação global e não é para menos. Levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019, apontou que milhões de pessoas sofrem todos os anos as consequências, por vezes fatais, de erros médicos. Para se ter uma ideia, a OMS estima que os erros médicos causem cinco óbitos a cada minuto.

No Brasil, dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar da Universidade Federal de Minas Gerais (Iess-UFMG), demonstraram que no período de abril de 2017 a março de 2018, com base em prontuários médicos de 182 hospitais do país, os erros médicos resultaram em quase 55 mil mortes ao ano, o equivalente a seis óbitos por hora.

Os números mostram um cenário alarmante. Mas como o erro médico é julgado pelos tribunais brasileiros?

Genival Veloso de França conceitua erro médico como a “conduta profissional inadequada que supõe uma inobservância técnica, capaz de produzir um dano à vida ou à saúde do paciente” (p.258).

Por sua vez, o Código de Ética Médica, em seu artigo 1º, do Capítulo III – Responsabilidade Profissional, dispõe que é vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.

Pode-se afirmar que a responsabilidade médica se caracteriza quando presentes a conduta voluntária, o dano, nexo causal, além do elemento subjetivo, que é a culpa – que se manifesta como negligência, imprudência ou imperícia.

O médico assume obrigação de meio, em que deve empenhar suas forças e conhecimento técnico para a evolução satisfatória do paciente, não tendo como meta o resultado em si, pois há limites para a sua atuação, que podem estar na insuficiência de respostas da medicina para a moléstia, nas idiossincrasias do paciente, nas complicações naturais de um procedimento e na evolução da própria doença.

Complicações e resultados adversos não são incomuns e, o fato de não haver cura para certas doenças não significa, por si só, que o paciente foi vítima de erro médico. Em tais casos, a capacidade técnica do médico é adequada, ele atua de maneira diligente, mas o resultado não é alcançado por fatos alheios à sua atuação e vontade.

Por esses motivos, não há que se falar em culpa presumida do médico, cabendo ao paciente o ônus probatório da culpa médica. Além do mais, como leciona França, é preciso distinguir o erro médico do acidente imprevisível e do resultado incontrolável. Vamos aos conceitos:

  • Acidente imprevisível – ocorre durante o ato médico, causa dano ao paciente, mas advém de caso fortuito ou força maior. Autoexplicativo, se trata de um acidente e, como tal, não previsto e incapaz de ser evitado.
  • Resultado incontrolável – o dano decorre de uma situação grave, evolução da própria doença e para a qual a medicina não possui tratamento.

Sérgio Cavalieri indica que o limite mínimo da culpa é a previsibilidade. Se não há possibilidade de previsão do resultado, não há como ser evitado, afinal, só é possível evitar o que se pode prever. Além do mais, se trata de previsibilidade específica, presente, relacionada às circunstâncias da conduta e não a mera previsibilidade abstrata, genérica. Dessa forma, afirma Cavalieri, “não havendo previsibilidade, estaremos fora dos limites da culpa, já no terreno do caso fortuito ou da força maior. […] Ninguém pode responder por fato imprevisível porque, na realidade, não lhe deu causa”. (p. 55-56)

Para França, o erro médico se materializa de duas formas: de ordem pessoal ou de ordem estrutural. É pessoal quando o dano é resultado de despreparo técnico e intelectual ou por descaso com o paciente; e é de ordem estrutural quando as condições de trabalho são precárias e há falta de insumos e equipamentos, o que prejudica a resposta satisfatória do paciente.

É certo que todo paciente tem sua história e deve ser respeitado. Entretanto, ao ajuizar uma ação de erro médico, cabe ao autor a prova do fato constitutivo de seu direito (artigo 373, I, CPC), sendo de suma importância que haja elementos que demonstrem a falta de diligência do médico e sua conduta culposa. E, aqui, um aviso: a culpa não precisa ser grave, basta que seja certa.

No processo, é comum que o magistrado determine perícia judicial médica para a elucidação dos fatos. Miguel Kfouri Neto ensina, citando o Prof. João Batista Lopes:

Convém repetir que, salvo casos excepcionais (ex. art. 306), todas as provas têm valor relativo, inclusive a pericial.

Conquanto revestida de caráter técnico ou científico, a prova pericial pode apresentar defeitos ou inexatidões como qualquer outro meio de prova, razão por que, de acordo com o princípio da livre convicção, o juiz poderá desprezar suas conclusões, pois ele é o peritus peritorum.

Objetar-se-á que o sistema adotado pelo legislador revela desprezo pelo técnico ou artista, em matérias em que seu parecer é indispensável. Responde, porém, Frederico Marques: ‘Se o magistrado tivesse de ficar preso e vinculado às conclusões do laudo pericial, o expert acabaria transformado em verdadeiro juiz da causa, sobretudo nas lides nas quais o essencial para a decisão depende do que se apurar no exame pericial (Instituições, 1967, v. 3, p. 386)

Decisões de Tribunais

Corroborando as considerações apresentadas, selecionei alguns poucos julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sobre erro médico, mas que refletem o entendimento majoritário da nossa Jurisprudência:

Apelação Cível 1000608-95.2017.8.26.0515, TJSP, Relator Alves Braga Junior, auxiliando Des. Claudio Augusto Pedrassi, Data, 25/06/2020:

AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ERRO MÉDICO. CIRURGIA PARA RETIRADA DE ÚTERO (HISTERECTOMIA). PERFURAÇÃO DA BEXIGA. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. NEXO CAUSAL. Pretensão de reparação por danos morais e materiais, em virtude de perfuração da bexiga, durante histerectomia. Alegação de negligência, imprudência e imperícia médica, o que acarretou danos à saúde da autora. Inadmissibilidade. Esclarecimentos da perícia descaracterizam a ocorrência de erro médico. Ausente falha ou falta do serviço. Ausente nexo causal entre o dano e conduta comissiva ou omissiva do Estado. Ausente dever de indenizar. Sentença mantida. RECURSO DESPROVIDO.

Nesse caso, a autora pleiteou danos materiais e morais por ter a bexiga perfurada durante cirurgia de histerectomia.

A sentença de 1º grau julgou improcedente o pedido, justificando que “como demonstrado pelo conjunto probatório, principalmente pelo laudo médico pericial, não foi encontrada prática médica não recomendada ou em desacordo com o que é preconizado para o atendimento prestado à autora. Em conclusão, a autora alegou, mas, não produziu prova para demonstrar que recebeu atendimento médico inadequado, em desacordo com a boa prática médica, portanto, e à vista da prova produzida, a improcedência da ação é a medida que se impõe”.

Irresignada, a autora interpôs Recurso de Apelação. O Tribunal de Justiça, ao analisá-lo, apontou que a autora não foi capaz de se desincumbir do ônus de provar o fato constitutivo de seu direito (art. 373, I, CPC).

Pontuou ainda que “o risco é inerente ao procedimento cirúrgico. Sem a demonstração objetiva de relação causal com a falha da atividade estatal, não há como reconhecer a responsabilidade civil. Ausente comprovação da falha na prestação do serviço médico e de atendimento deficiente, inviável reconhecer a responsabilidade dos réus pelo pagamento de indenização”.

Apelação Cível nº 1006007- 94.2015.8.26.0606, da Comarca de Suzano, Relator Rômolo Russo, Data 17 de fevereiro de 2021.

INDENIZAÇÃO. Erro médico. Exame de colonoscopia. Sentença de improcedência. Irresignação. Desacolhimento. Prova pericial que não indicara imperícia, imprudência ou negligência dos profissionais responsáveis pelo ato médico. Perfuração intestinal que, segundo a literatura médica, é possível complicação do procedimento realizado. Improcedência mantida. Recurso desprovido.

No caso em tela, a autora se submeteu a exame de colonoscopia com perfuração intestinal, dano que imputou aos profissionais que realizaram o procedimento.

O Tribunal de Justiça, ao examinar o caso, considerou o apelo inconsistente juridicamente, por se tratar de “demanda na qual é muitíssimo difícil o encontro da verdade”.

E afirmou que “como se sabe, em casos como o presente, a prova por excelência é a perícia médica” (Ap n. 0227919-88.2011.8.26.0100, 10ª Câmara de Direito Privado, V.U., Rel. Des. CESAR CIAMPOLINI, j. em 23/02/2016).

O laudo médico pericial apontou que não havia como estabelecer o nexo causal entre a conduta e o dano (perfuração do intestino), uma vez que foi aplicada a técnica recomendada e a lesão foi um acidente imprevisível. A perfuração, apesar de rara, é complicação descrita na literatura e pode acontecer.

Citou o REsp 442.247/MG, Superior Tribunal de Justiça (STJ):

“Segundo a jurisprudência, nas ações indenizatórias fundadas na responsabilidade civil, ao autor cabe à prova do fato constitutivo de seu direito, cumprindo-lhe demonstrar a culpa do agente, o dano e o nexo causal entre o ato culposo e o prejuízo”. (REsp 442.247/MG, 3ª Turma, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, j. em 05/06/2003).

O relator registrou ainda que a prova competia à apelante e que esta não conseguiu comprovar cabalmente os pressupostos do artigo 186, do Código Civil, além das disposições do artigo 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor.

Com esses fundamentos, foi negado provimento ao recurso, uma vez que não houve prova que evidenciasse falha na prestação dos serviços médicos.

Apelação Cível nº 1014395-79.2019.8.26.0562, da Comarca de Santos, Relator Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho, Data 24 de dezembro de 2020.

Apelações. Ação de indenização. Alegação de erro médico. Sentença de parcial procedência. Inconformismo de ambas as partes. Alegado erro de diagnóstico no tratamento inicial de paciente que teria chegado ao hospital réu com fortes dores no peito. Paciente portadora de doenças preexistentes (hipertensão arterial, diabete mellitus, dislipidemia). Paciente examinado e medicada (exames de ECG e enzimas). Alta com infarto poucas horas depois. Laudo pericial que indicou relação de causalidade entre o fato danoso e o atendimento prestado, sugerindo alta precoce, porém não confirmando a existência de negligência. Em se tratando de responsabilidade civil do médico é indispensável prova inequívoca de que houve conduta culposa no seu procede. Precedente desta Câmara. Improcedência. Ônus da sucumbência a cargo da autora, majorado em razão do provimento do recurso da ré, ressalvada a Gratuidade. Apelação da ré provida, prejudicada a da autora.

A autora procurou o hospital após sentir fortes dores no peito e vômito. O diagnóstico, após a realização de exames de praxe (eletrocardiograma e enzimas), foi de problemas gástricos. Medicada e orientada, foi liberada com queixas de dor. Na manhã seguinte, retornou ao hospital, com sintomas semelhantes. Submetida a novo eletrocardiograma, foi constatado infarto agudo do miocárdio.

A autora pleiteou a reparação civil alegando erro de diagnóstico, pois teve piora considerável em seu quadro clínico. Laudo pericial concluiu que houve alta precoce da paciente, “sendo nesse caso necessário uma maior investigação clínica com eletrocardiograma e marcadores séricos seriados, com possível internação para melhor investigação clínica”.

A sentença de 1ª instância acolheu parcialmente o pedido de indenização.

Ambas as partes apelaram – a ré alegou a inaplicabilidade da responsabilidade objetiva, a inexistência de nexo de causalidade entre a conduta e o dano, afastando, ainda a culpa do médico que atendeu a autora. A autora, por seu turno, requereu a majoração do valor indenizatório, tendo em vista o diagnóstico de nova sequela (Ateroma) decorrente da conduta danosa do hospital réu.

O Tribunal, ao avaliar a questão, ponderou que “de conformidade com a prova dos autos, o resultado apurado resultou dentro da normalidade, portanto, a autora não estava em situação de risco e emergência quando lhe foi dada alta médica”.

Pontuou que, apesar de o laudo pericial ter sugerido a repetição do exame de enzimas após quatro horas, “a não repetição não pode ser tida como erro grosseiro ou má prática da medicina. A doutrina médica não é especifica a respeito da necessidade da repetição do exame e recomenda que isso possa ser feito entre 6 a 8 horas após o primeiro exame”.

E continuou:

“À paciente foi dispensado o tratamento adequado aos sintomas relatados; assim, e diante da vasta gama de comorbidades da paciente, não pode o hospital ou o corpo médico serem responsabilizados pelo infarto sofrido pela autora, e as sequelas daí decorrentes.

Em resumo, não há prova de que o médico laborou com culpa, e consoante pacífica jurisprudência: ‘A responsabilidade do médico ‘não decorre do mero insucesso no diagnóstico ou no tratamento, seja clínico ou cirúrgico. Cabe ao paciente demonstrar que o resultado funesto teve por causa a negligência, imprudência ou imperícia do médico, sendo a prova da culpa imprescindível’ (RF 377/345, acórdão relatado pelo Des. Sérgio Cavalieri). No mesmo sentido: RP 119/200 (THEOTONIO NEGRÃO, Código Civil, 31ª edição, nota 1b ao artigo 951, destaque no original).”

Com esses argumentos, o relator considerou incabível a indenização pleiteada e o recurso da autora, prejudicado.

Observe, nesse último julgado, que o Tribunal deixou de considerar as conclusões do laudo pericial. Conforme dispõe o artigo 479, do Código de Processo Civil, o laudo é uma peça informativa, e o magistrado, ao fundamentar sua decisão, deve considerar o contexto fático-probatório, não estando adstrito ao laudo do perito.

Art. 479. O juiz apreciará a prova pericial de acordo com o disposto no art. 371 , indicando na sentença os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito.

O processo de erro médico

Como pontuei anteriormente, todo paciente tem sua história e merece respeito. Porém, ao ajuizar uma ação de indenização/reparação de danos materiais/imateriais por erro médico, é preciso que fiquem claramente delineados os elementos que caracterizam a responsabilidade do profissional – conduta voluntária, dano, nexo de causalidade e culpa (imprudência, negligência ou imperícia).

O processo deve ser estar instruído com provas contundentes do erro. É temerário propor uma ação com muitas informações subjetivas (emotivas) sem a devida comprovação fática, pois o juiz julgará de acordo com as provas apresentadas e a sucumbência, no caso de improcedência do pedido, caberá ao autor.

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